quarta-feira, 29 de junho de 2011

Schopenhauer, a tragédia e a negação budista da vontade

Na época em que Nietzsche redigia O Nascimento da Tragédia – publicado em janeiro de 1872 –, ele se achava sob a quase total influência de Schopenhauer. Assim, para o discípulo de Dioniso, a sabedoria trágica reproduzia, por meio da ilusão apolínea e da música dionisíaca, a mais íntima essência do mundo, da natureza, dos homens, da vontade ou, em suma, do Uno originário. No que diz respeito especificamente à música dionisíaca, esta se apresentava como um espelho sobre o qual se refletia a própria vontade universal, que nos chega como a verdade eterna ou, mais exatamente, como a verdade que jorra do fundo ou do núcleo do Uno originário.
Sem embargo, na própria obra O Nascimento da Tragédia – e mesmo em alguns textos que a preludiam –, já se vê desenhar uma tomada de posição crítica vis-à-vis de Schopenhauer. E esta posição só tenderia a acentuar-se à medida que Nietzsche fosse também se distanciando do autor de O Mundo Como Vontade e Representação. Destarte, na seção 7 daquela obra, Nietzsche critica Schopenhauer justamente naquilo que o filósofo tem de comum com o budismo: a resignação e a negação da vontade diante do sofrimento que acarreta todo desejo. Ora, na perspectiva do discípulo de Dioniso, a consolação metafísica que suscita a tragédia, e que se encarna no coro satírico, é toda ela entretecida de gozo, o gozo na sua potência indestrutível que afirma a vida, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico. Por conseguinte, o heleno profundo que o coro vem consolar – e que lança seu olhar sobre as forças demolidoras da natureza – corre ele também o risco de “aspirar a uma negação budística da vontade”. No entanto, a arte vem em seu socorro para redimi-lo, mas, “pela arte, é a própria vida que o redime para si mesma”.
Num fragmento póstumo do verão-outono de 1884, que faz parte de seu terceiro e último período, Nietzsche se mostrará ainda mais incisivo com relação às forças niilistas da decadência, que, por natureza, são negadoras da vida e de tudo aquilo que ela tem de fértil, de belo, de abundante, de potente, de tenso, de deleitoso e sensual. Com efeito, nada repugna mais a Nietzsche do que uma religião cuja moral recomenda a domesticação dos instintos e a supressão do prazer. Esta é “uma medida de emergência tomada por naturezas que não conhecem o critério da medida e que não têm outra escolha senão a de se tornarem libertinos e porcos, ou então ascetas”. Essas naturezas – continua o filósofo – encontraram no cristianismo e no budismo um modo de pensar que é, no mais alto grau, adaptado a toda a escória dos decadentes, dos doentes e malogrados da existência. Pode-se, pois, perdoar-lhes o fato de denegrirem um mundo onde foram malsucedidos. “Mas faz parte da nossa sabedoria considerar essas doutrinas e religiões como grandes manicômios e casas de reclusão.”
Em Para Além de Bem e Mal (1886), parágrafo 56, Nietzsche defenderá uma reflexão aprofundada sobre o pessimismo livre “da estreiteza e da simplicidade semicristã e semialemã” que, segundo ele, se exprimiram por último na filosofia de Schopenhauer. Assim, prossegue o filósofo, todo aquele que tiver lançado um olhar nos abismos do pensamento mais radicalmente negador – um olhar “para além de bem e mal e não mais, como Buda e Schopenhauer, na órbita da moral e de sua ilusão” – chegará talvez a abraçar um ideal totalmente oposto: o ideal do homem mais generoso, mais exuberante e mais afirmativo que possa existir.
Ora, conquanto o problema central da filosofia de Nietzsche esteja nas forças e nas relações de forças que não cessam de se superar e de se recriar, retorna inevitavelmente a questão: não seriam justificados todos os seus ataques contra a religião, ou as religiões, justamente por elas se apresentarem, na sua perspectiva, como as manifestações essenciais das forças niilistas da decadência?

Análise de O Mundo como Vontade e Representação de Schopenhauer, por Gilmar Kruchinski Junior


"No nada, o homem encontrará, enfim; a verdade que nunca saberá!"


O mundo como vontade e representação é uma obra ímpar.
Típico dos gênios inquietos, a riqueza hermenêutica de sua literatura, originalmente metafórica e filosófica, exalta o quê do gênero transfigurado em arte. A arte aqui mencionada explode na semântica lingüística, onde a memória visual e a inter-relação cognitiva dialógica entre o sujeito e a obra do autor, transformam o passado que se faz presença no presente da arte.
O paradoxal pessimismo de sua obra reflete seu caráter de realista lógico em coerência com sua filosofia; a negação e mortificação do sujeito para este não ser, o não-viver em um mundo onde a lógica da vontade é maligna; o ponto de fuga, a abstração que revela o sublime, a porta de saída do mundo maligno: A arte, fuga para o nada.
Seu fundamento e pressuposto ético-imanêntico, perpetrado pelo fundo panteísta que encontra sua versão no idealismo alemão com o seu contemporâneo Hegel, fundador do sistema aberto onde o absoluto é a parte e o fundamento. Avesso a visão do bem hegeliano neo-platonizado, Schopenhauer concebe o absoluto enquanto vontade, raiz metafísica, energia vital que move a engrenagem de tudo o que é.
A partir desse ponto, deduz-se que à vontade como fundamento ético também se legitima, incrivelmente esse pressuposto ético fará sentido na fundamentação de sua moral pietista de negação do mal e partilhamento do bem, um avesso da vontade cega e irracional e fundamento pressuposto do cristianismo, o bem para o outro.
A arte, tentativa bem sucedida da excelente obra de Schopenhauer, se manifesta pela mecânica do ponto de fuga pelo sublime, e a riqueza das palavras no estilo nominalista, místico-nihilista de um pensar a intuição da possibilidade fundamental de um desconhecido reconhecido em tão parca mediação fundamental, a linguagem propriamente dita, dita o desespero e a incerteza da nadificação da consciência; que se finda, vive-se eternamente na arte literária, a arte de escrever, a extensão eterna do pensar, a possibilidade não só do diálogo, mas da arte enquanto arte do belo, a arte do bem escrever, a grafia e o estilo que expressa mais que o dito; expressa a intuição: um dia imediata, mas no eterno devir, mediada pela arte gráfica; onde o sujeito é o artista do outro enquanto linguagem e enquanto intersubjetividade que se expressa no além do agora, onde o veículo é o livro, e a obra, arte.


Numa tal contemplação, de um só golpe a coisa individual se torna a idéia de sua espécie, e o indivíduo que intui, é o sujeito puro do conhecimento.       (Tomo 34).

O mundo como vontade e representação têm uma tarefa nobre: Salvar o homem pela arte. Essa arte inclui o doar-se para o outro, reconhecer a si mesmo enquanto outro em suas dificuldades e mazelas, aplicando o preceito cristão de amar uns aos outros como ato de protesto contra o mecanismo da vontade maligna.
A vontade é mortificada em função da salvação do ser de si, para o outro. Seu fundamento literário que tenta convencer-nos do que não vemos, provocando a fé, a crença que tenta em algo além do racional, produzindo um efeito psicológico-Estético, onde elementos não conscientes de nossa consciência estariam trabalhando em conjunto com esta última, e nesse ponto a obra O Mundo como Vontade e Representação pode tranqüilamente se sobrepor a doutrina da repressão de Sigmund Freud, esta sensação estranha que parte de sua própria alma, transfigurada e translúcida no motivo de sua obra indicam ao leitor a fé em um desconhecido terrível e nem sequer abordado objetivamente, onde a possibilidade de uma transcendência pela mortificação da consciência do ser, nos leva ao incognoscível, onde tudo o que sabemos é nada, como possibilidade de não-ser.
Schopenhauer arranha artisticamente e de forma terrivelmente doce, a possibilidade de um desconhecido saber de um nada que nem abarcamos, mas conhecendo-o ou não, nele adentraremos, queiramos ou não. O nada é matéria-prima, possibilidade pura de deixar de ser ao mero toque de algo, e onde o mundo que pode ser, alimentado pela força maligna da vontade, o universo mesmo, além dele e de tudo o que é, resta-o apenas como coisa nenhuma, o primordial nada além de tudo o que é, exposto em O Mundo Como Vontade e Representação, Livro III, a obra do admirável mestre.

Kubrick: A filosofia imersa no cinema

“Todos são livres para especular à vontade sobre a significação filosófica e
alegórica do filme”.
STANLEY KUBRICK

Literatura, música, fotografia e outras importantes formas de arte são partes da
constituição do cinema. E como vimos aqui, a filosofia também. A obra de arte sempre
submeteu-se a objeto de reflexão filosófico, conseguindo uma posição ativa de agente
transformador em questões filosóficas. O cinema, como arte industrial, tem obedecido
sua função. “2001” é apenas um de vários filmes que possuem filosofia em sua essência,
e são estes os responsáveis em grande parte pela educação filosófica popular. A
literatura já não é mais admirada por todos, menos ainda aquela que se dirige à reflexão,
e é certo que neste novo século, mais difícil se torna uma aceitação filosófica pela massa
social, mesmo quando se trata de cinema; mas grande foi a contribuição que esta arte
trouxe para as duas ou três últimas gerações.
Minha intenção, foi lembrar essa capacidade educativa do cinema, que mesmo
ignorada ainda encontra seus adeptos (estamos aqui, não?). Lembrar que o mais breve
entretenimento pode ser aproveitado, se visto com bom olhos. Lembrar que cinema é
arte. Que cinema é filosofia. Cinema é vida.

Filosofia e literatura: O risco do monólogo

 Literatura e filosofia têm, provavelmente, a idade do homem. Não a tenra idade moderna, datada no homem por Foucault, mas a idade do homem real, descoberto pela antropologia. É pouco provável que o homem de Altamira, exímio demiurgo de bisões rupestres, não fosse também capaz de poetizar o mundo e inquiri-lo. Por isso, quando a Universidade Católica de Goiás propôs-se a realizar o I Colóquio de Filosofia e Literatura, no Auditório do Básico, na Praça Universitária, pareceu que as onze horas de discussão previstas seriam quase nada perto do muito que filósofos, críticos, professores e escritores teriam a dizer sobre esses dois saberes que confluem desde tempos imemoriais. E era de se esperar que a platéia permanecesse atenta até o último minuto de cada conferência, saboreando palavra por palavra, refletindo conceito por conceito. Afinal, discutia-se não só a literatura, mas a filosofia, que, segundo a pensadora uspiana Marilena Chauí, "é o mais útil de todos os saberes". Em Convite à Filosofia, um best-seller com dezenas de edições, ela afirma que "o primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem é o útil?". Nada mais justo, portanto, do que aplicar sua máxima a um colóquio que associa a literatura ao "mais útil de todos os saberes", a filosofia.
Obviamente, não se trata de perguntar se um colóquio do gênero é útil, porque, a se crer em Marilena Chauí, a utilidade é a essência mesma do pensamento filosófico. Trata-se apenas de saber para quem ele foi útil. Mas, à luz do chauísmo, a resposta soa como um paradoxo " o colóquio não serviu a ninguém. Foi inútil. Ao menos é a impressão que se tem, ante uma platéia que não aplaudia os conferencistas " agradecia, educadamente, o final das conferências. E as intervenções do público, especialmente no primeiro dia do colóquio, corroboraram ainda mais essa impressão. Quase todos os que pediram a palavra denotaram distanciamento dos assuntos tratados. Uma aluna, que disse ter sonhado com o seminário, tal a sua ansiedade em debater o encontro da literatura com a filosofia, chegou a conceituar ao microfone: "Literatura é amor! Filosofia é amor!" Essa fala tão afetiva pareceu deslocada num colóquio tão douto, mas o deslocamento verdadeiro não foi dela e, sim, dos conferencistas " fisicamente no Básico da Católica, mas mentalmente no Collège de France.*
Aberto na manhã de 20 de junho, com a palestra do doutor em filosofia José Ternes, da UCG, o evento reuniu professores de várias universidades, entre eles o filósofo Roberto Machado, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de importantes obras sobre Foucault, Nietzsche e Deleuze, Roberto Machado acaba de lançar Foucault, a Filosofia e a Literatura (Jorge Zahar, 2000, 188 páginas). Já Maria Teresinha Martins, autora de Luz e Sombra em Lúcio Cardoso (Editoras da UCG e UFG), sua tese de doutorado, aproximou o escritor mineiro de Deleuze e Blanchot. Deleuze foi retomado por Orlando Bezerra, doutor em filosofia pela UFRJ, enquanto a conferência sobre Jacques Derrida coube ao baiano Evando Batista Nascimento, professor visitante na Universidade Federal do Espírito Santo e autor de Derrida e a Literatura (Editora da UFF, 1999, 364 páginas). Mestrando em filosofia política na UFG, Fábio Ferreira de Almeida falou sobre Bachelard. Luiz Fernando Medeiros, professor na Universidade Federal Fluminense, discorreu sobre a poesia de Armando Freitas Filho. Exceção à francofilia foi a conferência de Maria Aparecida Rodrigues, doutoranda na Umesp, que fez um paralelo entre o existencialismo do alemão Martin Heidegger e as obras de Graciliano Ramos e Clarice Lispector.
Mas a principal ênfase do I Colóquio de Filosofia e Literatura recaiu sobre Michel Foucault. Além das abordagens diretas de Roberto Machado e do mestrando em ciência política na UFG, Dênis Borges Diniz, a obra de Foucault suscitou mais debates, permeando todo o seminário. Sem dúvida, devido ao estranhamento causado por suas idéias a respeito de literatura. Foucault prega a morte do sujeito e, conseqüentemente, a do autor, fazendo com que a relação entre a literatura e a filosofia saia do costumeiro terreno das indagações existenciais para situar-se no arcabouço de um discurso autofundante. Essa a causa primeira da impossibilidade do diálogo entre a especializada plêiade de professores da mesa e a difusa massa de leigos da platéia, pontuada por um e outro professor, mesmo assim, dificilmente capazes de penetrarem tão profundamente " como o seminário exigia " na obra de um Foucault, de um Deleuze, de um Derrida. Apenas Foucault, um autor fecundo e desconcertante, por ser diferente até de si mesmo, já bastaria para desnortear o público. Em 1970, ao se candidatar a uma cátedra no legendário Collège de France, Foucault custou a ser compreendido até pelo relator de sua candidatura, Jules Vuillemin. Conta Didier Eribon, em Michel Foucault (Companhia das Letras, 1990), que Foucault saiu batendo a porta do apartamento de Vuillemin, porque Vuillemin continuava achando obscura a noção de enunciados em Arqueologia do Saber, mesmo depois de várias explicações, de viva voz, da parte do próprio Foucault.
O escritor Osman Lins (1924-1978), que antecipou muitas das percucientes críticas do filósofo Olavo de Carvalho às academias, ainda que no seu ambiente específico, as letras, demonstrou, de modo incontestável, o absurdo que é a transposição da última novidade acadêmica européia ou norte-americana para cursos de graduação brasileiros, em que os alunos padecem de um precária formação básica. Ainda que os mestres e doutores que participaram do I Colóquio de Filosofia e Literatura tenham o direito (e até o dever) de comunicar os resultados de suas pesquisas específicas sobre um ou outro autor, o ideal é que adubassem o solo da filosofia geral, antes de plantar a semente de um Derrida ou um Foucault. Isso, provavelmente, evitaria o explícito descompasso entre conferências e intervenções e, sobretudo, entre as conferências e a quase indiferença da maioria do público. Maria Teresinha Martins, observando que os alunos quase nada sabem sobre Lúcio Cardoso, foi a exceção, situando o escritor no contexto geral da literatura brasileira, inclusive com alguns dados biográficos. E Maria Aparecida Rodrigues, pelo próprio tema que abordou, as relações entre Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Heidegger, também esteve mais próxima do universo dos alunos. Já Roberto Machado, conciliando profundidade e clareza, a mesma que se encontra em Foucault, a Filosofia e a Literatura, soube ajustar, na medida do possível, o Auditório do Básico ao Collège de France.
Entretanto, não se pode medir a importância de um seminário filosófico com base em sua receptividade junto ao público. Seria levar a sério demais o panfletarismo de Marilena Chauí e transformar a melhor filosofia (geralmente difícil) no pior jornalismo (o de maior audiência). Ao contrário do que pensa a autora de A Nervura do Real (possível mãe de uma nova corrente filosófica, o confusionismo), a filosofia não pode ser "o mais útil de todos os saberes", pela simples razão de que ela só começa onde outros saberes acabam. A dona de casa sofrida que abraça a teologia carismática tem nela um conhecimento mais utilitário do que todas as filosofias juntas, de Sócrates a Heidegger. Em sua vida de escassas alternativas, o abandono do dogma em favor do conceito haveria de levá-la ao desespero, ao deslindar as causas de seu sofrimento e ver que elas não se assentam no céu mas na terra e que, mesmo assim, é impossível mudá-las. Por isso, o I Colóquio de Filosofia e Literatura foi útil mesmo não estabelecendo uma relação mais profícua com o seu público. Toda vez que departamentos distintos das universidades se abrem ao diálogo interdisciplinar, como propuseram José Ternes, Albertina Vicentini e Goiamérico Felício, os organizadores do colóquio, tanto alunos quanto a própria sociedade beneficiam-se da iniciativa, que contribui para enfraquecer as muralhas quase intransponíveis da especialização.
Pena que a dificuldade do diálogo não se deu apenas entre conferencistas e público. Desacostumada ao debate, a universidade brasileira costuma limitar-se à leitura de autores estrangeiros, posteriormente expostos como quadros estanques de um salão. Em determinados momentos, o I Colóquio de Filosofia e Literatura assemelhou-se a um mural, em que cada conferencista anunciou um quartinho de fundos da filosofia na esperança de dividi-lo com outros sem-tetos do saber. Não que faltasse profundidade aos expositores, mas é que o saber concentrado em ilhas tende a fazer de cada membro da audiência uma garrafa de náufrago num oceano de conhecimentos. Em cada exposição, cápsulas de autores viajavam em universos paralelos, a ponto de não se ter resposta sequer para o próprio tema do seminário " a confluência entre literatura e filosofia. Ante a pergunta de um dos presentes, que queria saber qual o solo comum entre os dois saberes, o filósofo José Ternes " que em seu livro Michel Foucault e a Idade do Homem demonstra um medo bíblico de acrescentar qualquer palavra às escrituras sagradas de Foucault " escapuliu: "Estabelecer regras de encontro é muito perigoso". Para que, então, realizar-se um colóquio sobre filosofia e literatura senão para tentar dar uma resposta a essa questão? Quando um filósofo recusa a verdade pronta, pode estar abrindo um caminho, mas quando se acomoda na sua negação apriorística, caiu no abismo da ignorância letrada " a pior forma de perplexidade.
É daí que nasce o solilóquio das especializações, por sinal um paradoxo " o especialista nega a verdade de sua própria tese para melhor livrá-la do questionamento alheio e poder impô-la como um dogma. É o que faz o especialista em Sartre ouvir o especialista em Foucault falando da morte do sujeito e ficar indiferente (ou o contrário). Numa das tentativas de aproximação entre literatura e filosofia, Maria Teresinha Martins disse que considerava Fernando Pessoa um poeta filosófico. Ora, por que Fernando Pessoa seria um poeta mais filosófico do que outros senão pelos temas que aborda, entre eles a angústia do ser, de significação crucial para o sujeito? Dita entre foucaultianos, a frase de Teresinha Martins deveria soar como uma heresia. Entretanto, José Ternes e Dênis Borges Diniz permaneceram indiferentes a ela, mesmo sendo defensores da visão de Foucault de que a literatura não deve ser pensada sob o prisma de nenhuma teoria da significação. Apenas o escritor Goiamérico Felício, doutor em literatura, foi um pouco mais ousado na tentativa de provocar o debate, primeiro instigando Dênis Diniz a discorrer sobre a inevitável angústia do autor ante a tese que decreta sua morte e, depois (ante a insistência de Diniz em apenas repetir Foucault, afirmando que autor e sujeito morreram), lembrando-lhe que Maurice Blanchot tratara da questão.
Por outro lado, quem assistiu à unção terniana com que Dênis Borges Diniz abordou a literatura em Foucault, deve ter-se espantado ao ouvir de Roberto Machado que, num dado momento, a partir de 1966, Michel Foucault desinteressou-se completamente pela literatura, ainda que ela se mantenha como instrumento importante para a compreensão de sua filosofia, como o próprio Machado procura demonstrar em seu último livro. Por mais que Foucault pense ter matado o sujeito e seus discípulos queiram deificar apenas o seu discurso, é difícil não cobrar do filósofo de carne e osso a responsabilidade ética sobre o que disse em tinta e papel. Como observa Olavo de Carvalho, "a vida do filósofo está para sua filosofia como a jurisprudência está para os códigos". Aliás, quanto mais se aferram ao discurso de Foucault, negando outros referenciais, mais os foucaultianos caem em contradição. Ao negar o sujeito e sua interação com as coisas, concentrando-se unicamente no discurso, apartados dos homens e do mundo, eles são capazes de falar horas inteiras ou escrever maçudas teses sem recorrer a nenhum outro mortal, senão a Michel Foucault. Com isso, pensam estar sendo fiéis ao mestre e matando o autor, quando na verdade estão criando um Deus " o sujeito onipresente que nasce do discurso único.

Teatro e Filosofia: relações perigosas?

O teatro em sua origem está vinculado ao processo de criação do espírito grego. Processo esse que mostra a capacidade do grego antigo de criar formas artísticas cujas preocupações eram dar conta das contradições humanas. O homem grego teve que criar o teatro para poder enfrentar o sofrimento da existência humana, sem cair em formas maniqueístas no sentido da moral ocidental. Sem a idéia de bem ou de mal, o grego elaborou por meio do pensamento mítico ou mágico um universo artístico em que os instintos humanos pudessem ter a liberdade de se expressar em toda a sua diversidade.
Seguindo o pensamento mítico, o teatro grego acompanhou a lógica do concreto no sentido de não haver a idéia de representação em relação à vivência humana. Deste modo, o teatro grego expressa, sob a forma da criação artística, o viver humano em todas as suas dimensões: do amor ao ódio, do perdão à vingança.
Teatro e Filosofia: relações perigosas?
Teatro e Filosofia: relações perigosas?
É nesse aspecto da expressão da vivência em seu estado original que podemos relacionar  teatro e filosofia não somente na dimensão do belo, mas, antes, na preocupação com o Logos, isto é, com o processo significativo ou racional do Cosmos. Heráclito (500a.C.), como um dos fundadores do pensamento filosófico, desenvolve a idéia de o homem acompanhar a racionalidade das coisas em sua totalidade. Apesar de Heráclito ter sido considerado hermético em seu tempo, o que ele propunha era que o homem seguisse a razão das coisas que aparecem na totalidade cósmica.
Não é por acaso Heráclito dizer em um de seus fragmentos que o homem deve acompanhar aquilo que é comum. Ao expressar o ato pensante de seguir aquilo que é comum, Heráclito traz à tona a raiz da filosofia, que é o voltar-se para o fundamento racional do real. Tal fundamento racional é comum a todos os homens, os quais devem aprender a superar as suas opiniões ou visões particulares sobre a realidade. Daí Heráclito brincar com a tolice humana que se limita à dimensão do senso-comum cuja determinação é entender as coisas de forma superficial e unilateral.
A contribuição de Heráclito para o amadurecimento da filosofia em seus primórdios está no não medo de apreender as raízes do real em suas contradições. Como ele mesmo diz a mais bela harmonia nasce da luta dos contrários. É justamente nessa luta dos contrários que o teatro encontra o seu pilar, o qual sustenta todos os propósitos para captar e expressar esteticamente a realidade dos instintos humanos. É esse mesmo pilar que afirma a necessidade da criação de uma cultura estética no ocidente, em que a contradição precisa ser compreendida não como o ilógico ou o psicótico da mente humana, mas como a própria vida em seus vastos ramos de possibilidades de ser. Ganhar o estatuto de ser, como humano, é estar no universo da contradição em toda sua dimensão trágica, pois é esta que motiva o processo criador do teatro.
Em Nietzsche arte trágica apreende a vida trágica do mundo. Na visão trágica do mundo encontram-se confundidas a vida e a morte, a ascensão e a decadência de tudo quanto é finito. O sentimento trágico da vida é antes a aceitação da vida, a jubilosa adesão também ao horrível e ao medonho, à morte e ao declínio. Vida e morte são irmãs gêmeas, arrastadas num ciclo misterioso de ascensão e de decadência. Ao mesmo tempo, que surge composição de formas, outras se desagregam. Quando uma coisa vem à luz, outra tem de se afundar nas trevas. Por outro lado, luz e trevas, formas e sombras, ascensão e declínio constituem apenas faces da existência em sua multiplicidade de possibilidades de ser. A vida infinita é ela própria a construtora, a organizadora que fixa formas para seguidamente as destruir. Ainda no dizer de Heráclito, o caminho ascendente e o caminho descendente são um e o mesmo.
Não por acaso que Apolo e Dionísio são considerados metáforas dos instintos estéticos antagônicos dos Gregos. Apolo simboliza o instinto plástico vinculado à clareza e à composição harmoniosa. Em contrapartida, Dionísio expressa o caótico e a desmedida, principalmente no que se refere à sexualidade. Daí Nietzsche apontar que a cultura grega gozava da bênção das grandes potências da arte. O apolíneo contraria todo o dionisíaco e vice-versa; a inimizade reina entre estas duas forças opostas: combatem-se e repelem-se mutuamente. No entanto, elas não podem existir uma sem a outra. O grego conheceu e sentiu as angústias e os horrores da existência em sua raiz contraditória. Deste modo, para que fosse possível viver, o grego teve de criar uma estética teatral que pudesse dar conta da unidade da vida e da morte, ou ainda da tensão entre os instintos.
É com Sófocles (500a.C.) que podemos compreender melhor as contradições humanas em toda a sua profundidade existencial. Seja em Édipo Rei, seja em Antígona (para citar duas peças de sua trilogia), Sófocles constrói uma forma trágica que consegue captar de modo contundente as tensões instintivas humanas. Édipo, que mata seu próprio pai, casando em seguida com a mãe expressa a impossibilidade de o homem fugir de seu destino (moira). Lembremos que Édipo foge da casa de seus pais adotivos temendo matar o pai. Tal temor se devia a consulta que Édipo havia feito a um oráculo, que previra o referido assassinato. Ao fugir, Édipo não se dá conta que estava indo em direção ao seu destino trágico. Apesar de decifrar o enigma da Esfinge que assolava Tebas com pragas, Édipo não consegue decifrar o seu próprio ato de assassinar o pai (biológico). A capacidade de decifrar enigmas por meio de uma visão clara, não evita que Édipo realize o que estava previsto. O trágico em Édipo Rei não pode ser evitado. Eis o motivo de Édipo, ao final da peça, furar os olhos em um ato de demonstração que não adianta sermos capazes de ver as coisas de forma clara ou mesmo interpretá-las com segurança, pois na vida em sua determinação contraditória desfaz qualquer ato humano.
Já em Antígona, a questão do trágico se encontra na desmedida por parte dos personagens Antígona e Creonte em suas ações. Sobrinha e tio lutam por defender formas morais diferentes. Antígona luta por uma moral familiar ao decidir cumprir o dever de enterrar o irmão, morto em uma batalha, que tinha como propósito recuperar o poder do pai (Édipo). Desrespeitando a proibição do Estado de enterrar o irmão, considerado traidor, Antígona entra em um turbilhão de ações que a levam à condenação de ser enterrada viva.
Creonte por sua vez, ao decidir condenar a sobrinha à morte de um modo tão brutal também entra em um turbilhão de ações desmedidas. As conseqüências das ações de Creonte, defensor da moral do Estado,  é o suicídio tanto de seu filho, após este tentar, sem sucesso, interceder pela noiva (Antígona), como de sua esposa, que se mata ao ver o filho morto. Sófocles ao tratar das ações em Antígona reforça a estrutura finita do humano diante das contradições que regem a existência em sua multiplicidade infinita. Não é sem propósito Sófocles salientar que agir é muito perigoso, mas que não é possível não agir.
Diante da dimensão medonha da vida o teatro grego descobre o caminho que leva não a cura de todas as feridas das contradições humanas, como gostaria Hegel, mas a uma forma de saber cuja base está no respeito àquilo que não pode ser controlado: a vida. É nesse aspecto que a filosofia pré-socrática, na figura de Heráclito, se coaduna com o teatro em sua origem. No entanto, apesar de passado vários séculos, filosofia e teatro procuram em um sentido heideggeriano apreender o significado original do ser. Seja a filosofia em sua reflexão conceitual, seja o teatro em sua dimensão artística.

Escultura - umas das mais filosóficas artes


Escultura uma arte milenar, intimamente ligada à filosofia, ao simbolismo e a sensibilidade. Michelangelo Buonarroti, nasceu em 1475 na pequena Caprese, Província Fiorentina. Desde sua infância constantemente se frustrava nos estudos, pois enchia seu caderno de exercícios com desenhos. Aos 13 anos de idade, já então considerado mestre da pintura em Florença, ingressa como aprendiz no estúdio de Domenico Ghirlandaio, mas, o aprendizado dura apenas cerca de um ano por considerar a pintura uma arte limitada, passando então a dedicar-se a escultura por ser uma expressão mais ampla e monumental tornando-se renomado escultor ao esculpir o colossal Davi , símbolo de sua luta contra o destino, como Davi ante Golias em Florença, Itália. (disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=197>. Acesso em 01 abril 2011)
Esta é uma história muito parecida com a do Escultor Auri Alberto Borsatto,nascido em 1963, na pequena e pacata cidade de Querência do Norte, Estado do Paraná, indo morar ainda muito cedo na Cidade de Naviraí, à época Estado de Mato Grosso, atualmente Mato Grosso do Sul. Escultor, desde 1983, começou pintando seus livros e cadernos escolares já na 5ª série, despertando seu total interesse pela arte ao ter acesso a livros de desenhos e pinturas com Michelangelo e Leonardo Da Vinci, os quais acabaram por se tornar ídolos do artista. A identificação era tanta que assinava seus desenhos “Auri Da Vinci”.
Por volta dos 15 anos começou a pintar, porém, certa época esteve de passagem por Naviraí um entalhador e escultor profissional, despertando o interesse, do então pintor, por entalhes em madeira e, como não tinha acesso às técnicas de pintura, começou a buscar técnicas para entalhe em madeira, fazendo um pequeno entalhe de Nossa Senhora, o qual tem consigo até hoje.
O segundo entalhe foi um cavalo árabe, o qual em pouco tempo acabou vendendo, despertando o total interesse em desenvolver seu dom na arte da escultura de cavalos, em especial do cavalo árabe, pois conforme afirma: “arte é um produto muito difícil de vender”. Iniciou um processo de estudo das características das raças e proporções dos cavalos, bem como de sua história antiga e tendências de linhagens modernas. Participou de feiras com telas e pequenas esculturas.
Foi premiado nos Salões de São Paulo com uma escultura do Pelé e em Campo Grande, como melhores escultores do Estado.
Fez esculturas no Brasil para o Haras Boa Vista, Haras Meia Lua, Leo Stambrouck, Rodrigo Faias, dentre outros. Nos Estados Unidos da América, passou 2 meses no Mid West Tranning Center de David Bogs esculpindo Cavalos Árabes como Magnum Psyque e Padron Psyque. Na Europa esculpiu Vivaldi Rasch de propriedade do Haras Halsdon Arabian do baterista do Rolling Stones, Charlie Watts, além de outros criadores da Itália, Bélgica e Polônia. Ainda na América do Sul, tem trabalhos na Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia.
No ano de 1992 vendeu uma escultura para Laucidio Coelho Neto, sendo convidado em 2002 para esculpir os Garanhões do Haras Engenho, Tallyen El Jamaal e Hylan estando atualmente trabalhando na escultura da nova aquisição Polonesa do Haras de Laucidio, que será sucesso por suas incríveis características, o Garanhão Primero Marc.
Atualmente, Auri, tem várias encomendas para criadores do Brasil, Polônia, EUA e está pronto para novos desafios.
Auri Alberto Borsatto um artista que vai além da própria arte, esculpe filosofia, esculpe alma.

Elos entre a pintura e a Filosofia



"As minhas pinturas devem assemelhar-se ao mundo, de forma a evocarem o seu mistério" - René Magritte


Eu como admirador da pintura como forma de arte, não poderia deixar de postar sobre um dos meus pintores favoritos e de sua obra de maior representação.  O tríptico: " O jardim das delícias terrenas- Hieronymus Bosch"


Painel central do tríptico "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. Bosch morreu em 1516, deixando-nos um legado de figuras que nunca foram vistas pelos olhos humanos. A originalidade artística de Bosch não consiste em combinar partes de animais e de humanos, mas na sua fusão para gerar novas criaturas. Nos "Jardins das Delícias", Bosch exibe a sua criatura mais fantástica: uma cabeça de homem enxertada numa casca de ovo quebrada, que, por sua vez, se liga a duas pernas que são troncos de árvores com raízes lançadas em dois barcos. Apesar do mal e, em especial, da luxúria assumirem diversas formas nas suas pinturas, Bosch não mostrou interesse no Diabo, como mostra o seu tratamento do tema dos anjos rebeldes ("A Queda dos Anjos Rebeldes"): os anjos em queda são semelhantes a peixes e ratos voadores e o Inferno onde caiem não é feito de chamas, mas habitado por duas cabeças sem corpos que rastejam com os seus pés. No "Juízo Final" de Bosch, a expulsão dos anjos rebeldes assemelha-se a uma tempestade de areia pelo movimento, cor e textura, e, no "Cristo Coroado de Espinhos", o conflito entre diabos e anjos é eclipsado pela composição central do Cristo torturado. Para Bosch, não existe conflito entre o bem e o mal: o seu Cristo e os seus santos habitam outro mundo completamente distinto do mundo da luxúria, resguardado e protegido das tentações, perversidades e torturas e, no "Juízo Final" de Viena, a corte celestial é constituída pela Virgem, João Baptista e doze figuras que parecem ser os apóstolos. Na visão quase onírica de Bosch, os humanos são quase todos pecadores e tolos que habitam um mundo carnal. A bondade não tem existência nesse mundo real habitado por pecadores: os sete pecados espreitam em todos os lugares do mundo carnal e, como são vistos por Deus, serão punidos de modo severo. A preocupação com a maldade humana real domina completamente a pintura de Bosch. O tríptico comprado por Filipe II, rei de Espanha, mostra as legiões do mal que invadem o mundo, dando forma concreta e tangível aos medos que capturaram o espírito do homem no fim da Idade Média: o painel da esquerda mostra a criação de Eva, a tentação de Adão e a sua expulsão do Paraíso. No topo, os anjos rebeldes são expulsos violentamente do Céu como um enxame repugnante de insectos. O painel da direita exibe uma visão do Inferno que mais parece o mundo carnal, onde todos os tipos de demónios pavorosos, meio animais, meio humanos ou mesmo máquinas, flagelam, fustigam e castigam as almas pecadoras ou, mais exactamente, os corpos humanos corruptos. O imaginário de Bosch é quase onírico e, numa antecipação genial, surrealista: a sua fábrica de monstros gera continuamente criaturas fantásticas que povoam densamente as suas pinturas. O que significam esses monstros? Em termos genéricos, um monstro é definido em relação à norma ou, simplesmente, ao tipo ideal, que, segundo Aristóteles, é a reprodução idêntica, mediante a qual o filho é semelhante ao pai. Quanto maior for a distância do modelo, maior será a imperfeição da "criatura", que, no ponto mais afastado, deixa de ter a aparência humana e passa a ser um monstro. O monstro é um "ser diferente", ou melhor, um desvio à norma: a monstruosidade constitui um fenómeno que se opõe à "generalidade dos casos", sem no entanto questionar a ordem universal da natureza (Aristóteles) ou pôr em dúvida o bom fundamento e a perfeição da criação (Santo Agostinho). Embora tenha excluído o ponto de vista finalista e tipológico, a genética evolutiva e molecular não se afasta muito de Aristóteles quando define o monstro como uma excepção ao destino comum da combinatória genética. Ambas as teratologias - a aristotélica e a médico-genética - estão preocupadas com as causas das anomalias e das malformações observadas em todos os níveis da natureza viva. Porém, a Idade Média viu preferencialmente os monstros como reproduções defeituosas dos modelos. A concepção de monstro - monstrum - varia muito de sentido no decorrer da Idade Média, mas no seu outono as noções de monstruoso e de demoníaco estão de tal modo ligadas que é praticamente impossível distingui-las: o contingente diabólico substitui o monstro cosmológico e implanta-se no mundo, modelando-o em tons sombrios e pessimistas. O monstro-diabólico coloca questões para as quais a Idade Média não tinha respostas, vacilando intermitentemente entre a necessidade de explicar a desordem representada pelo monstro e a necessidade de crer no postulado de que a natureza, como obra de Deus, só pode ser perfeita e organizada segundo uma disposição imperturbável. O segredo é propriedade de Deus, o único Senhor de todas as criaturas, incluindo os monstros. Quando confrontado com os monstros, o homem está diante do sentido misterioso, oculto e admirável, da manifestação do poder divino (Mandeville): como sinal divino, o monstro é prodígio, no sentido de constituir um aviso prévio de acontecimentos futuros, cujo sentido oculto desafia a interpretação ou mesmo a adivinhação. Deus criou o mundo segundo uma determinada ordem ou norma que nunca abandona, a não ser que queira anunciar algo oculto e deveras importante. A ruptura do curso normal da natureza desencadeia no homem o sentimento de horror, que se intensifica à medida que a Idade Média se torna cada vez mais sombria. A eclosão de monstros funciona no imaginário de Bosch como indicador figurativo da irrupção real de elementos de uma nova ordem social dentro da ordem moribunda: as figuras fantásticas de Bosch são seres mutagénicos que subvertem internamente a iconografia cristã dominante. Enquanto o inventário completo e exaustivo das figuras não estiver feito, com a ajuda de programas de computador, não podemos decifrar todo esse imaginário fantástico. No entanto, a reunião de dois corpos num só corpo revela que a sua individualidade se encontra na própria fusão: um dos corpos dá vida - o corpo mãe, enquanto o outro ameaça parar. Isto significa que a pintura de Bosch configura uma nova concepção do corpo: o corpo é aberto e incompleto e, como não está claramente delimitado do mundo, mistura-se com o mundo, onde se confunde com os outros, os animais, as plantas, as coisas, os elementos, a terra, a arquitectura e as máquinas. É um corpo cósmico que representa e encarna o conjunto de todo o universo material e corporal, concebido como o inferior absoluto, como um princípio que absorve e dá luz, como um sepulcro e um seio corporais, como um campo lavrado e semeado que começa a germinar. Ora, a concepção do corpo explicitada nas pinturas de Bosch deriva da filosofia humanista do Renascimento, nomeadamente da filosofia italiana que concebeu a ideia fundamental de microcosmos: o corpo humano era visto como um princípio susceptível de efectuar a destruição do quadro hierárquico do mundo medieval e de criar um novo quadro. A filosofia renascentista operou a desagregação do cosmos hierárquico medieval, em especial a sua gradação dos valores no espaço, mediante a qual aos graus espaciais no sentido de baixo para cima correspondiam os graus de valor, colocando todos os seus elementos no mesmo plano: o alto e o baixo foram relativizados e a ênfase deslocou-se para as noções de frente e atrás. Esta substituição do vertical pelo horizontal, acompanhada pela intensificação do factor tempo, realizou-se em torno do corpo humano: o corpo tornou-se assim o centro de um cosmos que, em vez de se mover de baixo para cima, se move para a frente sobre a horizontal do tempo, do passado para o futuro, o que possibilita ao homem carnal afirmar o seu valor fora da hierarquia do cosmos. Pico della Mirandola defendeu - na sua Oratio de Hominis Dignitate - a tese de que o homem é superior a todas as outras criaturas, incluindo os espíritos celestes, porque não é somente existência mas também e essencialmente futuro. A noção de hierarquia refere-se única e exclusivamente à existência estável, firme, imóvel e imutável: as criaturas não se alteram desde o nascimento, porque a sua natureza foi criada completa, acabada e imutável. Ora, o livre devir que caracteriza o homem escapa à noção de hierarquia: o homem não recebeu uma única semente - como sucede com as criaturas -, mas as sementes de todas a vidas possíveis. De modo qualitativamente diferente da natureza das outras criaturas condenadas a desenvolver-se na única semente que receberam, o homem pode escolher a semente que desenvolverá, cuidando dos seus frutos e fazendo-os desabrochar dentro de si. Isto significa que o homem pode tornar-se simultaneamente vegetal e animal ou mesmo anjo e filho de Deus. O seu corpo reúne em si todos os elementos e todos os reinos da natureza: a existência de múltiplas sementes e possibilidades e a liberdade de escolha colocam o homem fora da hierarquia, ou seja, sobre a horizontal do tempo e do devir histórico. Para Pico della Mirandola, o homem não é algo fechado e acabado; pelo contrário, o homem é um ser inacabado e aberto. A filosofia humanista do Renascimento é atravessada por duas tendências teóricas: uma tendência deseja descobrir no homem todo o universo, com os seus elementos naturais e as suas forças, o seu alto e o seu baixo, enquanto a outra linha de pesquisa procura esse universo no corpo humano que aproxima e une no seu seio os fenómenos e as forças mais distantes do cosmos. O imaginário de Bosch filia-se nesta segunda tendência subterrânea do Renascimento, a qual exprime a nova sensação do cosmos como a habitação familiar do homem. Pintado e visto como habitação do homem, o novo cosmos tal como emerge nas pinturas de Bosch, em tensão dialéctica com o mundo medieval, retoma as ideias - aliás muito difundidas no Renascimento - da magia natural, da simpatia e da astrologia, as quais ajudaram Giordano Bruno e Campanella a destruir o quadro do mundo medieval. Pico della Mirandola deu particular ênfase ao motivo do microcosmos sob a forma da simpatia mundial, de resto levada a cabo pelos Descobrimentos Portugueses que possibilitaram que todos os membros da humanidade entrassem em contacto real e efectivo uns com os outros, de modo a tornar a humanidade una e única: o homem pode finalmente reunir em si o superior e o inferior, o longínquo e o próximo, e sondar os mistérios escondidos nas profundezas da terra. O imaginário mágico de Bosch reúne o que o universo medieval tinha dissociado, apagando as fronteiras maltraçadas entre os fenómenos e transpondo a diversidade infinita do mundo para a superfície horizontal única do cosmos em devir. Marcilio Ficino introduziu a animação universal para mostrar que o cosmos não era um mero agregado de elementos mortos, mas um ser animado: cada uma das suas partes constitui um órgão do todo. A biologização do mundo é consumada pela teoria da natureza de Cardano: todos os fenómenos são vistos como análogos das formas orgânicas, incluindo os metais que são as sepulturas das plantas e que percorrem uma evolução semelhante à evolução orgânica, com uma juventude, uma adolescência e uma idade madura. Esta visão animada do mundo - recentemente retomada pela Hipótese Gaia de James Lovelock e Lynn Margulis - impregna as pinturas de Bosch, onde todos os fenómenos se dirigem para a superfície horizontal única do mundo em estado de mudança, de modo a descobrir novos lugares, a atar novos laços, e a criar novas vizinhanças. Mas no centro deste reagrupamento fenoménico está o corpo humano que alberga no seu interior a diversidade do universo. O corpo humano é matéria criadora destinada a organizar toda a matéria cósmica, cujo movimento no tempo biológico e histórico é garantido pelo nascimento de gerações incessantemente renovadas. Neste novo cosmos, cada ser humano pode fazer parte do povo imortal: aquele que inova e cria história, resistindo às tentações contrárias às forças da mudança social qualitativa. As pinturas de Bosch são representações assustadoras das forças do mal ou, mais precisamente, de monstros, e foram interpretadas pelos críticos imbuídos de espírito científico como expressões de uma mente patológica ou, pelo menos, de uma mente sujeita ao uso de alucinógenos. Além de não apreenderem a riqueza imaginativa de uma época - o fim da Idade Média ou as dores de parto do mundo moderno, estas leituras deixam escapar a própria riqueza criadora do psiquismo humano, sobretudo da dialéctica entre a angústia e o desejo. O monstro é produto de funções mentais partilhadas pelos humanos de todas as épocas, culturas e idades e, por isso, desempenha uma função natural no seu psiquismo. Ao desvalorizar a imaginação como faculdade cognitiva, a tecnociência revela o seu elemento ideológico: a apologia do status quo e a promoção da dimensão adaptativa do homem em detrimento do princípio da possibilidade histórica. Bosch pintou a colisão de dois mundos durante o período da sua coexistência quase sincrónica: os seus monstros são figuras utópicas que emergem num mundo prenhe de vida ainda-não-nascida contra as figuras ideológicas do imaginário medieval. É certo que os demónios da mudança que se mostram e se de-monstram nas pinturas de Bosch assustam, mas não assustam todos os indivíduos: assustam e aterrorizam apenas os indivíduos instalados e satisfeitos com as ordens do mundo hierárquico medieval. Os monstros boschianos são demónios da mudança que visam desinstalar o poder eclesial que justificava e legitimava a opressão feudal. Se a mudança atemoriza os membros das ordens instaladas, o mesmo não acontece com aqueles que desejam e anseiam por um mundo melhor. Para os que sonham acordados, os monstros são figuras cómicas que assombram e incendeiam o mundo fechado medieval, desencadeando neles o riso orgiástico que funda um mundo melhor.