quarta-feira, 29 de junho de 2011

Schopenhauer, a tragédia e a negação budista da vontade

Na época em que Nietzsche redigia O Nascimento da Tragédia – publicado em janeiro de 1872 –, ele se achava sob a quase total influência de Schopenhauer. Assim, para o discípulo de Dioniso, a sabedoria trágica reproduzia, por meio da ilusão apolínea e da música dionisíaca, a mais íntima essência do mundo, da natureza, dos homens, da vontade ou, em suma, do Uno originário. No que diz respeito especificamente à música dionisíaca, esta se apresentava como um espelho sobre o qual se refletia a própria vontade universal, que nos chega como a verdade eterna ou, mais exatamente, como a verdade que jorra do fundo ou do núcleo do Uno originário.
Sem embargo, na própria obra O Nascimento da Tragédia – e mesmo em alguns textos que a preludiam –, já se vê desenhar uma tomada de posição crítica vis-à-vis de Schopenhauer. E esta posição só tenderia a acentuar-se à medida que Nietzsche fosse também se distanciando do autor de O Mundo Como Vontade e Representação. Destarte, na seção 7 daquela obra, Nietzsche critica Schopenhauer justamente naquilo que o filósofo tem de comum com o budismo: a resignação e a negação da vontade diante do sofrimento que acarreta todo desejo. Ora, na perspectiva do discípulo de Dioniso, a consolação metafísica que suscita a tragédia, e que se encarna no coro satírico, é toda ela entretecida de gozo, o gozo na sua potência indestrutível que afirma a vida, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico. Por conseguinte, o heleno profundo que o coro vem consolar – e que lança seu olhar sobre as forças demolidoras da natureza – corre ele também o risco de “aspirar a uma negação budística da vontade”. No entanto, a arte vem em seu socorro para redimi-lo, mas, “pela arte, é a própria vida que o redime para si mesma”.
Num fragmento póstumo do verão-outono de 1884, que faz parte de seu terceiro e último período, Nietzsche se mostrará ainda mais incisivo com relação às forças niilistas da decadência, que, por natureza, são negadoras da vida e de tudo aquilo que ela tem de fértil, de belo, de abundante, de potente, de tenso, de deleitoso e sensual. Com efeito, nada repugna mais a Nietzsche do que uma religião cuja moral recomenda a domesticação dos instintos e a supressão do prazer. Esta é “uma medida de emergência tomada por naturezas que não conhecem o critério da medida e que não têm outra escolha senão a de se tornarem libertinos e porcos, ou então ascetas”. Essas naturezas – continua o filósofo – encontraram no cristianismo e no budismo um modo de pensar que é, no mais alto grau, adaptado a toda a escória dos decadentes, dos doentes e malogrados da existência. Pode-se, pois, perdoar-lhes o fato de denegrirem um mundo onde foram malsucedidos. “Mas faz parte da nossa sabedoria considerar essas doutrinas e religiões como grandes manicômios e casas de reclusão.”
Em Para Além de Bem e Mal (1886), parágrafo 56, Nietzsche defenderá uma reflexão aprofundada sobre o pessimismo livre “da estreiteza e da simplicidade semicristã e semialemã” que, segundo ele, se exprimiram por último na filosofia de Schopenhauer. Assim, prossegue o filósofo, todo aquele que tiver lançado um olhar nos abismos do pensamento mais radicalmente negador – um olhar “para além de bem e mal e não mais, como Buda e Schopenhauer, na órbita da moral e de sua ilusão” – chegará talvez a abraçar um ideal totalmente oposto: o ideal do homem mais generoso, mais exuberante e mais afirmativo que possa existir.
Ora, conquanto o problema central da filosofia de Nietzsche esteja nas forças e nas relações de forças que não cessam de se superar e de se recriar, retorna inevitavelmente a questão: não seriam justificados todos os seus ataques contra a religião, ou as religiões, justamente por elas se apresentarem, na sua perspectiva, como as manifestações essenciais das forças niilistas da decadência?

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